Uma série de estudos entre Direito e Psicologia Comportamental
Em uma república democrática, o processo judicial é reconhecido como garantia de efetivação da igualdade através de um debate pacífico, com regras pré-estabelecidas, e intermediado por um terceiro imparcial, o julgador. É, em grande parte, nesta imparcialidade em que a sociedade deposita a sua confiança nas instituições públicas, na estrutura jurisdicional e na Justiça como um todo.
No entanto, é sabido que desvios e quebras de imparcialidade acontecem, seja por ação ou omissão, de forma involuntária ou de forma deliberada, por razões de ordem objetiva ou subjetiva, maculando a ordem democrática em razão do desequilíbrio no tratamento das partes pelo juiz.
Reconhecendo que o processo judicial consiste em uma garantia de efetivação da cidadania, e sabendo que eventuais comportamentos imparciais acabam ocorrendo em uma lide, a presente série de posts tem como objetivo expor as múltiplas dimensões da imparcialidade do julgador, apresentando estudos interdisciplinares relacionados ao Direito e a Psicologia Comportamental Cognitiva.
Mas afinal, o que é ser um juiz imparcial?
Muitos autores vêm se preocupando com o estudo da imparcialidade do julgador ao longo da história, existindo um consenso de que se trata de matéria que precisa ser abordada com muita seriedade, pois se trata de garantia que fundamenta a própria ideia de processo democrático e republicano.
Para COSTA (2016) a imparcialidade não é um princípio, mas uma regra indeclinável e um pressuposto de possibilidade do sistema que, ainda que seja um direito fundamental, não se comporta como princípio, uma vez que não se trata de um estado ideal de coisas a ser gradualmente alcançado, nem de um fim constitucionalmente estabelecido, que, em confronto com outros fins igualmente caros, tem de ser relativizado por questões práticas. Pelo contrário, para o autor, a imparcialidade judicial é um ponto inflexível que obedece a uma lógica de “tudo ou nada”, e aplica-se mediante simples avaliação de correspondência entre a construção conceitual da descrição normativa e a construção conceitual dos fatos. Estando presente a imparcialidade judicial, há conformidade com o direito; se está ausente, há contrariedade.
CALVINHO (2008, p.12) ensina que a imparcialidade deve ser entendida em sentido amplo, para a qual a autoridade deve: a) não ter interesse no processo, b) não estar sujeita a nenhum outro poder - institucional ou não institucional, como grupos economicos e meios massivos de comunicação -, c) abster-se de realizar ou suplantar a atividade processual das partes e d) obedecer à ordem jurídica.
O mesmo autor refere ainda que o processo é entendido como método de debate pacífico que segue regras pré-estabelecidas e se desenvolve entre partes antagônicas que atuam em condição de perfeita igualdade ante um terceiro imparcial com o objetivo de resolver heterocompositivamente um litígio, motivo pelo qual é considerado como abrigo dos direitos fundamentais, tornando possível a sua realização, sendo vital ao sistema democrático pro homine e a proteção dos direitos humanos.
CASARA (2019), por sua vez, aduz que imparcialidade é sinônimo de alheabilidade, ou seja, os juízes não podem ter interesse pessoal em relação ao resultado do processo, nem atuar para retirar proveito político, midiático, financeiro ou social da causa posta em julgamento. Mais do que isso: todo julgador deve ter contato com o processo em uma situação de não-saber, sem ter convicções ou certezas acerca dos fatos narrados nos autos. O autor (2019) ainda manifesta que, no processo brasileiro, a decisão do juiz imparcial só é tomada no momento constitucionalmente adequado estabelecido conforme a classe processual, e, até esse derradeiro momento, o juiz deve estar em condições de alterar suas impressões provisórias sobre o caso. Trata-se de um dos pilares da estrutura judiciária democrática, havendo, portanto, verdadeiro direito fundamental ao acesso a um juiz independente e imparcial.
Imparcialidade objetiva X imparcialidade subjetiva
Sobre a imparcialidade em seu aspecto objetivo, GOLDSCHMIDT (2016, p.20) leciona que tal garantia supõe que o julgador não seja parte interessada na controvérsia, referindo que a ninguém pode ser juiz e parte ao mesmo tempo. Para o autor (2016, p.20) a imparcialidade objetiva consiste em colocar em parênteses todas as considerações subjetivas do julgador, devendo submergir-se no objeto da lide, ser objetivo, esquecer-se de sua própria personalidade.
Para COSTA (2015), a imparcialidade subjetiva relaciona-se à vedação de privilégio às preferências do mundo intrapsíquico do juiz, sendo uma imparcialidade psicológica, enquanto a imparcialidade objetiva, ou impartialidade, ou imparcialidade funcional, relaciona-se a característica de terceiridade do julgador, que não deve atuar como se parte fosse. Conforme ainda leciona o autor (2015), o desejável “juiz neutral” é o juiz funcionalmente neutro, que não ajuda nem prejudica, por isso não basta que seja subjetivamente imparcial, sendo necessário que também seja objetivamente imparcial.
No entanto, COSTA (2018) manifesta que quando se diz que o juiz deve ser imparcial, o termo assume, ao menos, doze sentidos no plano jurídico-positivo, motivo pelo qual representa um problema de caráter poliédrico e, por conseguinte, complexo, refratando-se em garantias fundamentais que não se reduzem simploriamente ao duo categorial da imparcialidade objetiva e da imparcialidade subjetiva, mas a partir da compreensão de um conjunto amplo de variáveis no plano jurídico-positivo, quais sejam:
i) o juiz deve ser im-parcial, não-parte, alheio ou terceiro ao conflito [GARANTIA FUNDAMENTAL DA TERCEIRIDADE];
ii) o juiz não pode ter objetivamente qualquer interesse jurídico, moral ou econômico no desfecho da causa [GARANTIA FUNDAMENTAL DO DESINTERESSE];
iii) o juiz da causa não deve ter conexões fortes de afeição, aversão ou envolvimento profissional com qualquer das partes (ascendente, descendente, cônjuge, companheiro, noivo, namorado, amigo íntimo, inimigo, sócio etc.) [GARANTIA FUNDAMENTAL DO DISTANCIAMENTO];
iv) o juiz deve lutar contra eventual predisposição, preferência, antipatia ou preconceito que nutra subjetivamente por qualquer das partes - em razão de raça, cor, religião, sexo, orientação sexual, idade, estado civil, ideologia político-social, status socioeconômico, grau de escolaridade etc. -, ainda que na prática seja impossível um grau absoluto de neutralidade ou um nível zero de contaminação psicológica [GARANTIA FUNDAMENTAL DO ESFORÇO PELA NEUTRALIDADE PSICOLÓGICA];
v) o juiz não se deve enviesar cognitivamente pelas heurísticas de confirmação (ex.: o juiz da liminar tende a confirmá-la na sentença; o juiz de garantias na investigação criminal tende a receber a denúncia), representatividade (ex.: o juiz da prova oral tende na sentença a valorar nervosismo como mentira e tranquilidade como verdade), ancoragem (o juiz da prova ilícita excluída tende a perseguir nos autos o mesmo resultado prático da reinclusão; o juiz da sentença terminativa nulificada tende a rejulgar pela improcedência), etc. [GARANTIA FUNDAMENTAL DO NÃO-ENVIESAMENTO COGNITIVO];
vi) o juiz não deve, mediante iniciativas oficiosas, favorecer ou perseguir funcionalmente qualquer das partes, devendo agir somente por provocação [GARANTIA FUNDAMENTAL DA INÉRCIA FUNCIONAL] (obs.: um dos seus corolários é a GARANTIA DA DISPOSITIVIDADE ou DA AUTORRESPONSABILIDADE PROBATÓRIA DAS PARTES, a qual evita o risco de que o juiz favoreça uma das partes ordenando ex officio provas que a auxiliem; outra derivação é a GARANTIA DA AÇÃO PROCESSUAL, que atribui à parte a provocação do exercício da função jurisdicional, evitando o risco de que o juiz o faça sponte sua com a intenção de favorecer ou prejudicar alguém);
vii) o juiz não deve sofrer interferências nem pressão interna ou externa, direta ou indireta, de ordem política ou técnica, para beneficiar ou prejudicar qualquer das partes; sofrendo, não deve curvar-se em hipótese alguma [GARANTIA FUNDAMENTAL DA INDEPENDÊNCIA];
viii) o juiz não deve externar em público predisposição, preferência, antipatia ou preconceito por qualquer das partes, mesmo que essa condição íntima jamais redunde em privilegiamento ou perseguição funcional [GARANTIA FUNDAMENTAL DA APARÊNCIA DE NEUTRALIDADE];
ix) o juiz deve manter a sua imparcialidade absolutamente incorruptível e aparentar em sua conduta pública essa incorruptibilidade [GARANTIA FUNDAMENTAL DA INTEGRIDADE E DA CORREÇÃO];
x) o juiz deve tratar as partes com urbanidade e lhaneza, evitando atritos que o indisponham contra elas e que lhe inquinem, consequentemente, a imparcialidade [GARANTIA FUNDAMENTAL DA URBANIDADE E DA LHANEZA];
xi) o juiz da causa deve integrar órgão cuja competência haja sido definida ex ante facto por critérios impessoais e objetivos estabelecidos em lei, impedindo-se com isso nomeações ad hocque visem deliberadamente favorecer ou prejudicar qualquer das partes [GARANTIAFUNDAMENTAL DO JUIZ NATURAL];
xii) o juiz que não queira, não possa ou não consiga ser imparcial deve ser substituído por iniciativa sua ou a requerimento da parte interessada [GARANTIA FUNDAMENTAL DA SUBSTITUIBILIDADE].
COSTA (2018) ainda leciona que há uma unidade arquifundamental entre as dimensões da imparcialidade, por tal motivo inexiste hierarquia entre as doze garantias anteriormente expostas, sendo que nenhuma é mais proeminente que a outra, e que todas se reforçam mutuamente sob um regime funcional de circum-ligamento e inter-influência, para concretizar a imparcialidade em sua pré-positividade.
Do apontamento de COSTA (2018) observa-se uma complexidade da imparcialidade judicial que revela o descabimento do dualismo categorial da objetividade e da subjetividade, sendo necessária a realização de uma análise muito mais abrangente do referido instituto. No mesmo sentido se observa que a imparcialidade é uma garantia que transborda e funda o sistema processual e, portanto, de todos os sistemas processuais existentes.
Assim, podemos concluir que o juiz imparcial é alheio, não possuindo interesse pessoal no resultado do processo, nem atua para lograr proveito político, midiático, financeiro ou social da causa em julgamento; é independente, não estando sujeito a nenhum outro poder institucional ou não institucional, como grupos econômicos e meios massivos de comunicação; se abstém de realizar a atividade processual que incumbe as partes; e é obediente á ordem jurídica.
No próximo post da série iremos abordar a imparcialidade subjetiva a partir de estudos de Direito e da Psicologia Comportamental Cognitiva.
Tiago Adede y Castro é advogado (OAB/RS 96.782) e sócio do escritório Adede y Castro Advogados Associados em Santa Maria – RS
A presente série de posts tem como base o trabalho de conclusão de curso que apresentei em curso de pós-graduação, especialização em Direito Processual Civil na UFN, sob orientação do Prof. Dr. Igor Raatz.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
CALVINHO, Gustavo. LA IMPARCIALIDAD DEL JUZGADOR. Piedra angular para edificar un concepto de proceso respetuoso de los derechos fundamentales. Ponencia presentada al XXI ENCUENTRO PANAMERICANO DE DERECHO PROCESAL - Cali, Colombia, agosto de 2008.
CASARA, Rubens Roberto Rebello. Vamos levar a imparcialidade judicial a sério?. Coluna Cláusula Pétrea. Justificando. Publicado em 27 de fevereiro de 2019. Disponível em: < http://www.justificando.com/2019/02/27/vamos-levaraimparcialidade-judicialaserio/>. Acesso em 15 de setembro de 2019.
COSTA, José Eduardo da Fonseca. Algumas considerações sobre as iniciativas judiciais probatórias. Revista Brasileira de Direito Processual – RBDPro. Belo Horizonte, ano 23, n. 90, abr./jun. 2015.
COSTA, José Eduardo da Fonseca. As garantias arquifundamentais contrajurisdicionais: não criatividade e imparcialidade. 19/04/2018
COSTA, José Eduardo da Fonseca. LEVANDO A IMPARCIALIDADE A SÉRIO: proposta de um modelo interseccional entre direito processual, economia e psicologia. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Doutorado em Direito Processual Civil. São Paulo. 2016. Disponível em: < https://tede2.pucsp.br/bitstream/handle/6986/1/Eduardo%20Jose%20da%20Fonseca%20Costa.pdf >. Acesso em 15 de setembro de 2019.
GOLDSCHMIDT, Werner. La imparcialidad como principio básico del proceso (la partialidad y la parcialidad). Disponível em: < http://www.academiadederecho.org/upload/biblio/contenidos/la_imparcialidad.pdf >. Acesso em 5 de outubro de 2019.