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A cabeça do juiz - diálogos entre Direito e Psicologia sobre a imparcialidade subjetiva do julgador

No primeiro post da nossa série “A imparcialidade do julgador para além do que se vê”, concluímos que o juiz imparcial é alheio, não possuindo interesse pessoal no resultado do processo, nem atua para lograr proveito político, midiático, financeiro ou social da causa em julgamento; é independente, não estando sujeito a nenhum outro poder institucional ou não institucional, como grupos econômicos e meios massivos de comunicação; se abstém de realizar a atividade processual que incumbe as partes; e é obediente á ordem jurídica.


Decidir é algo complexo


Necessário dizer que há complexidade na tomada de decisões, pois este processo é capaz de compreender certa quantidade de fatores a serem considerados, alguns de aspecto absolutamente psicológico e subjetivo, aliada a uma natural limitação cognitiva do ser humano que pode interferir negativamente nesses julgamentos.


Essa complexidade ultrapassa os ditames da ciência jurídica, sendo necessário adentrar em áreas da ciência que buscam entender o processo de julgamento a partir de critérios complementares e absolutamente fundamentais ao Direito. Deste modo, para se compreender a imparcialidade subjetiva do julgador, no presente artigo, serão abordados conhecimentos interdisciplinares.



Para tanto, será utilizado como principal referencial bibliográfico o sofisticado estudo desenvolvido pelo Dr. Eduardo José da Fonseca Costa sobre a psicologia comportamental cognitiva, em que propõe um modelo interseccional entre direito processual, economia e psicologia, utilizando-se, majoritariamente, das pesquisas desenvolvidas pelos psicólogos israelenses Daniel Kahneman (vencedor do premio Nobel de Economia em 2002) e Amos Tversky. O modelo de Costa, que será melhor exposto posteriormente, é proposto a partir da psicologia comportamental cognitiva e a analise econômico-comportamental do Direito.


COSTA (2016) leciona que a psicologia cognitiva é o ramo da psicologia experimental que estuda os processos mentais superiores, incluindo memória, raciocínio, aprendizagem, resolução de problemas, julgamento, tomada de decisão e linguagem. Explica que muitos psicólogos que aderem a essa perspectiva frequentemente comparam o pensamento humano às operações de um computador gigante envolvido em um cálculo complexo [“metáfora do ordenador”], o qual recebe informação e em relação a ela procede a transformações, armazenamentos, recuperações e utilizações; nesse sentido, pensar é processar informações. Ou seja, o processo cognitivo é estudado a partir de comportamentos externos objetivamente observáveis.


Por mais inteligente que o julgador seja, por mais desenvolvido que seja o seu intelecto, está sujeito a falhas e heurísticas. Conforme COSTA (2016), as heurísticas consistem em procedimentos de simplificação cognitiva que, inevitavelmente, a mente humana utiliza para processar informações complexas vindas do exterior e possibilitar a tomada de decisões de forma eficiente. Tratam-se de juízos intuitivos, não fundamentados, baseados em conhecimentos parciais, experiências ou suposições, que às vezes são corretos e às vezes são errados, sem haver uma segurança lógica absoluta.


O autor (2016) ainda explica que, a partir das heurísticas, produzem-se os chamados “atalhos cognitivos” ou “regras de ouro”, a partir das quais as pessoas realizam julgamentos simplificados sem que tenham de tomar em consideração todas as informações relevantes e contando apenas com um conjunto limitado de pistas. Neste sentido, COSTA (2016) destaca que as heurísticas acontecem em razão da escassez de recursos cognitivos e motivacionais da mente humana, motivo pelo qual faz-se necessário utiliza-los de forma eficiente e rápida para a tomada de decisões cotidianas.


No entanto, ainda que muitas vezes as heurísticas contribuam para a tomada de decisões rotineiras, podem resultar em desvios sistemáticos e previsíveis que levam a decisões subótimas.


DELFINO e LOPES (2016, p.6) referem que as pesquisas de Kahneman e Tversky demonstraram ser incorreta a crença segundo a qual o homem estaria sempre apto a avaliar de modo objetivo e racional toda fortuna de questões que lhe é submetida, julgando e operando com clareza em seu caminhar pelo cotidiano da vida. Os autores (2016, p.6) ainda lecionam que por mais que as pessoas possuam discernimento sobre o que se passa em suas mentes, o homem reiteradamente guia-se em seu dia a dia por impressões e sentimentos:


Conquanto seja corriqueiro supor que as pessoas possuem discernimento sobre o que se passa em suas mentes, a maioria das impressões e pensamentos surge ali, na experiência consciente delas, sem que tenham a mínima noção de como foram parar lá. O trabalho mental, que gera impressões, intuições e fomenta a adoção de inumeráveis decisões, ocorre de modo silencioso na mente de cada ser humano [...] Não há que moralizar precipitadamente essa questão. Trata-se de algo inerente à natureza do ser humano, oriundo do seu pensamento mais primitivo, que facilita a lida diária, sem contar que a confiança nutrida em crenças e preferências intuitivas é, de maneira geral, justificada. Não obstante, nem sempre assim ocorre, nem todas as intuições surgem de uma especialização genuína, e é precisamente neste ponto que reside a ameaça de prejuízos oriundos de decisões ruins, sobretudo em campos nos quais a racionalidade deve ser uma constante.


Para COSTA (2016, p.45), a premissa central da teoria psicológica cognitiva é o entendimento de que o cérebro humano funciona como um limitado processador de informações, que não pode gerir com sucesso todos os estímulos que cruzam o seu limiar de percepção. Neste sentido, a complexidade de múltiplas tarefas excede a capacidade do cérebro de processar informações e, como resultado, os decisores são impelidos a cometer erros:


A complexidade processada pela mente humana aumenta, ao tomar-se uma decisão, quando se está diante de uma dúvida, um conflito ou uma incerteza. Sob absoluto estado de certeza e sob absoluto estado de ignorância a tomada de decisão não se revela problemática. No entanto, a questão torna-se mais intricada quando a decisão é tomada sob uma situação de risco, em que o sujeito dispõe de alguma informação e a partir dela consegue avaliar tão apenas probabilidades (condenar um acusado, prever o resultado de uma eleição, antever o valor futuro do dólar, escolher uma escola para os filhos, prever o resultado de uma cirurgia etc.). Por isso, essas decisões são, em essência, “apostas” cujos resultados são conjuntamente determinados pela escolha individual e por algum procedimento aleatório específico. Nalguns casos, como nas apostas em jogos de dados, as probabilidades objetivas são exatamente conhecidas e é possível calcular a esperança matemática de ganhar ou perder. Já noutros casos, como nos investimentos em negócios ou em bolsa de valores, o cálculo dos benefícios somente se funda no conhecimento de estimativas subjetivas e aproximadas das probabilidades.

Mesmo que o julgador não queira, ou perceba, é capaz de julgar de forma enviesada e imparcial, de forma consciente ou não, a partir de ilusões cognitivas.


Neste sentido, sobre os estudos desenvolvidos pelos psicólogos israelenses Daniel Kahneman (vencedor do premio Nobel de Economia em 2002) e Amos Tversky, COSTA (2016) refere que, assim como não raro nos deixamos levar por ilusões visuais, também estamos sujeitos a ilusões cognitivas.


COSTA (2016) expressa que Kahneman e Tversky relacionaram e sistematizaram as regras heurísticas, definindo-as como as regras cognitivas que todo ser humano aplica inconscientemente ao processar uma informação que recebe do exterior e que permitem reduzir as tarefas complexas de atribuir probabilidade e predizer valores a operações de juízo mais simples. O autor (2016) caracteriza tais atalhos como formas disfuncionais de processar a informação que afetam o raciocínio lógico-abstrato e que acontecem de forma previsível em circunstâncias particulares em todos os países e culturas.


Essas regras cognitivas não podem ser consideradas como desvirtuamentos do pensamento provocados por emoções como medo, afeição e ódio, conforme assevera COSTA (2016), são erros sistemáticos na opinião de pessoas normais, que ocorrem no projeto do mecanismo cognitivo, motivo pelo qual não se pode confundir inteligência com racionalidade, uma vez que pessoas de inteligência elevada não são imunes a vieses ou predisposições automáticas.


COSTA (2016, p.60) explica que, conforme doutrina de Kahneman e Tversky, em razão da natural escassez de recursos mentais, o comportamento cognitivo do ser humano caracteriza-se pela existência de dois sistemas, denominados “Sistema 1” e “Sistema 2”:


O Sistema 1 é intuitivo, impulsivo, rápido, automático, crédulo, com pouco ou nenhum esforço e nenhuma percepção de controle voluntário, que inclui habilidades inatas que compartilhamos com outros animais. É exatamente onde residem os vieses cognitivos. Daí por que se trata de uma “máquina de tirar conclusões precipitadas” com base em pouca evidência (é mais fácil construir uma história coerente quando você sabe pouca coisa, quando há poucas peças para encaixar no quebra-cabeça).
Já o Sistema 2 é deliberativo, cauteloso, lento, preguiçoso, incrédulo, oneroso, aloca atenção às atividades mentais laboriosas que o requisitam, incluindo cálculos complexos, muitas vezes associadas à experiência subjetiva de atividade, escolha e concentração (obs.: essa linha divisória entre dois “sistemas” é arbitrária, pois as bases sobre as quais se caracterizam as operações mentais são contínuas).

Deste modo, observa-se uma clara relação do “Sistema 1” às heurísticas anteriormente explanadas, uma vez que este sistema é caracterizado como um processo mental automatizado, sem esforço, associativo, rápido, paralelo e opaco, a partir de atributos afetivos, propensões causais, questões concretas e específicas, bem como protótipos.


Por outro lado, observa-se do “Sistema 2” um elevado grau de inteligência, uma vez que é caracterizado por ser um processo cognitivo realizado de forma controlada, com esforço, de forma dedutiva, lenta e serial, tendo como base o autoconhecimento e a aplicação de regras, a partir de uma dinâmica neutra, estatística, abstrata, e baseada na análise de uma conjuntura.



COSTA (2016) leciona que os dois sistemas estão em permanente funcionamento e interação, sendo que o Sistema 1 gera continuamente sugestões ao Sistema 2: impressões, intuições, intenções e sentimentos. Se endossadas pelo Sistema 2, tudo isso se transforma em crenças e ações voluntárias. Se uma resposta satisfatória para uma pergunta difícil não é rapidamente encontrada, o Sistema 1 encontra uma pergunta relacionada que é mais fácil e que responde – ainda que de maneira imperfeita ou equivocada – a ela. A esse fenômeno se dá o nome de substituição (“atribute subsitution”).


No entanto, conforme aduz o autor (2016, p.61), o Sistema 2 tem alguma capacidade de mudar o modo como o Sistema 1 funciona programando as funções normalmente automáticas de atenção e memória:


Na verdade, uma das tarefas do Sistema 2 é justamente dominar os impulsos e os erros do Sistema 1; ou seja, o Sistema 2 é encarregado do autocontrole, embora isso exija monitoramento acentuado e atividade diligente; entretanto, na prática, o Sistema 2 age mais como um defensor para as emoções do Sistema 1 do que como um crítico dessas emoções – ele mais endossa que impõe. [...] Um Sistema 1 ativo, que busca coerência, sugere soluções para um Sistema 2 complacente.Quando o Sistema 1 funciona com dificuldade, ele recorre ao Sistema 2 para fornecer um processamento mais detalhado e específico que talvez solucione o problema do momento. O Sistema 2 é mobilizado quando surge uma questão para a qual o Sistema 1 não oferece uma resposta, ou seja, quando essa questão viola o modelo de mundo mantido pelo Sistema 1,


Neste sentido, COSTA (2016), leciona que cabe ao processo deliberativo (ligado ao Sistema 2, que exige esforço, motivação, concentração e execução de regras de aprendizado, embora seja lento e preguiçoso) a missão de verificar os acertos e desacertos do processo intuitivo (ligado ao Sistema 1, que é automático, rápido, se desenvolve espontaneamente e sem esforço e não requer ou consome atenção.


Desta forma, COSTA (2016) explica que o julgador deve ser visto como uma pessoa comum que tende a levar-se por intuições, embora seja capaz de superá-las por meio de pensamento complexo e deliberativo. Neste sentido, a racionalidade procedimental do julgador não é plena, motivo pelo qual é praticamente impossível à mente refletir sobre todas as opções em jogo; daí por que a decisão tomada acaba sendo sub-ótima, ou seja, não atinge o nível máximo de utilidade esperada, preferindo uma opção “meramente satisfatória”.


DELFINO e LOPES (2016) expressam que é mesmo relevante o fato de que a capacidade intuitiva esteja em ação na vida humana e contribua, seja para a assimilação do conhecimento, seja também para facilitar a tomada de decisões, às quais, com o tempo, tornam-se mais ou menos automáticas. No entanto, referem que alguns problemas se apresentam mais difíceis, sem solução segura à vista, e a intuição, por ser quase maquinal, entra em funcionamento e prevê de imediato uma saída nem sempre adequada para o dilema, existindo uma tendência do mapa mental em substituir uma questão mais complexa por uma mais fácil (heurística). Em razão disso, conforme DELFINO e LOPES (2016), ainda que confiantes de si, não raro decidimos e atuamos de forma desacertada, porquanto vítimas de tendenciosidades, preconceitos, propensões ou inclinações. Julgamos amiúde sob incertezas, já que afetados por heurísticas e vieses não facilmente identificáveis. Os autores (2016, p.7) ainda expressam o seguinte:


Para resumir, sabe-se hoje que o homem: (i) possui aversão ao esforço mental e, por isso, está inclinado a não pensar suficientemente, aceitando a resposta mais agradável ou familiar; (ii) soluciona problemas sem ter acesso a todas as alternativas possíveis, apegando-se apenas em experiências passadas; (iii) sujeita-se a alterações comportamentais pela exposição a qualquer coisa influenciável (palavras, objetos, ambiente); (iv) não é imparcial ou neutro e a todo momento busca uma causalidade por não conseguir aceitar fatos sem que estejam acompanhados de uma história; (v) tem a tendência de aceitar uma informação inicial como se verdadeira fosse (efeito halo). Ou seja, é mera ilusão a crença de que o ser humano é racional e consciente acerca de todas as decisões que toma ao longo da sua existência, em especial porque o cérebro ostenta, entre os seus segredos, desvios cognitivos que afetam negativamente a qualidade da decisão.

Os vieses cognitivos


Os vieses cognitivos, conforme exposto anteriormente, são formas disfuncionais de processar a informação que afetam o raciocínio lógico-abstrato e que acontecem de forma previsível em circunstâncias particulares em todos os países e culturas. COSTA (2016) leciona que são três os tipos de vieses cognitivos que particularmente tomam a atenção dos estudiosos da matéria: a) egocentric bias ou viés egocêntrico (que se refere à tendência das pessoas a interpretar informação em prol de seus próprios interesses); b) hindsight bias ou viés de retrospectiva (por força do qual os tomadores de decisão tendem a atribuir alta probabilidade a eventos simplesmente porque eles acabaram ocorrendo); c) optimism bias ou viés de otimismo (por força do qual os indivíduos acreditam que a probabilidade de enfrentarem um mau resultado é menor do que realmente é).


Além dos referidos atalhos mentais, COSTA (2016, p.48) relaciona uma série de outros vieses cognitivos identificados pela ciência e que são perceptíveis no processo de tomada de decisão, por exemplo:


[...] Viés atencional: a tendência de nossa percepção de ser afetada por nossos pensamentos recorrentes; Viés de automação: a tendência a depender excessivamente de sistemas automatizados, o que pode levar a informações automatizadas errôneas, substituindo as decisões corretas; [...] Efeito Backfire: quando as pessoas reagem a evidências não confirmadas, fortalecendo suas crenças; [...] Efeito líder de torcida: a tendência das pessoas parecerem mais atraentes em um grupo do que isoladas; [...] Falácia de conjunção: a tendência de assumir que condições específicas são mais prováveis ​​que as gerais; [...] Efeito Dunning-Kruger: a tendência de indivíduos não qualificados superestimarem suas habilidades e a tendência de especialistas subestimarem suas habilidades; [...]

No plano processual, em detrimento da imparcialidade subjetiva do julgador, destacam-se o viés da ancoragem e o da confirmação.



Sobre o viés da ancoragem, COSTA (2016) leciona que, com frequência, a valoração inicial exerce influência indevida e desproporcional sobre a análise realizada pelo sujeito, provocando erros que passam inadvertidos para o próprio interessado. Esta propensão foi inicialmente detectada na realização de estimativas numéricas; todavia, posteriormente, constatou-se que essa estratégia equivocada de formação de juízos também se dava em valorações não numéricas. De acordo com COSTA (2016, p.109):


A partir desse clássico estudo, diversos outros estudos empíricos têm demonstrado a presença da ancoragem como um efeito psicológico forte, robusto e persistente em vários domínios do julgamento e da tomada de decisões. No âmbito da justiça criminal, por exemplo, a ancoragem – tomada como a superposição entre a condenação imposta pelo juiz e os termos da denúncia oferecida pelo Ministério Público – é a heurística de maior impacto, afetando aproximadamente, segundo alguns estudos, 60% das resoluções judiciais.

A partir deste viés, observa-se uma cadeia de ancoragem, entre instituições e graus jurisdicionais, motivo pelo qual COSTA (2016, p.110) assevera que, se o juiz criminal se ancora na denúncia do Ministério Público, não é difícil imaginar que no recurso de apelação o tribunal se ancore na sentença apelada e que no julgamento colegiado o resto da turma julgadora se ancore no voto do relator.


Sobre o viés da confirmação, COSTA (2016) aduz que se trata de processo mental caracterizado pela tendência do sujeito a filtrar uma informação que recebe, de maneira que, de forma inconsciente, busca e supervaloriza as provas e os argumentos que confirmam sua própria posição inicial, e ignora e não valora as provas e argumentos que não respaldam essa posição.


Neste sentido, o autor (2016) leciona que tal propensão à confirmação é uma tendência irracional de buscar, interpretar ou recordar informação de uma maneira tal que confirme alguma de nossas concepções iniciais ou hipóteses, tratando-se da tendência de priorizar as informações que apoiam uma hipótese inicial e ignorar informações contraditórias que apoiam hipóteses ou soluções alternativas: mesmo quando encontramos evidências que contradigam uma solução que escolhemos, somos inclinados a continuar com nossa hipótese original. COSTA (2016, p. 116) explica a forma como o viés da confirmação age na tomada de deciões de julgadores, nos seguintes termos:


O viés de confirmação também pode afetar os juízes quando avaliam as provas que lhes são apresentados. Especificamente, os juízes podem ser tendenciosos em favor de provas que confirmem suas hipóteses anteriores e podem prescindir de uma prova que não corresponda às suas suposições anteriores. De fato, diversos estudos têm apontado para a ocorrência desse viés entre juízes, advogados e oficiais de polícia. Essa é a razão pela qual o juiz da sentença anulada ou nulificada não pode reapreciar a causa. Tudo isso mostra o desacerto, p. ex.: da prolação da sentença penal condenatória pelo mesmo juiz que já apreciara pedido de prisão cautelar ou de concessão de medidas na fase investigativa como busca e apreensão, interceptação telefônica e quebras de sigilo fiscal e bancário; da prolação da sentença cível pelo mesmo juiz que já apreciara pedido de concessão de tutela sumária fundada em probabilidade ou verossimilhança da pretensão de direito material afirmada pelo autor (ex.: tutela cautelar, tutela de urgência ou evidência satisfativa); [...]


DELFINO E LOPES (2016) expressam que foi a partir das pesquisas de Kahneman e Tversky que os grandes centros de pesquisa de psicologia comportamental cognitiva identificaram mais de 40 propensões ou vieses cognitivos. No campo judicial, DELFINO e LOPES (2016, p.7) utilizando-se dos estudos de Fonseca Costa, Juarez Freitas, Chris Guthrie, Jeffrey J. Rachlinski, Andrew J. Wistrich e Muñoz Aranguren, expõe as conclusões que demonstraram que tanto jurados como juízes não estão imunes aos vieses cognitivos. Os referidos estudos identificaram o seguinte:


i) O juiz da liminar tende a confirmá-la em sua sentença: o julgador está sujeito a uma predisposição automática (confirmation bias) que o leva a, inconscientemente, sobrelevar provas e argumentos que confirmem sua posição inicial. Ele é conduzido a ignorar (ou a não valorar) provas e argumentos contrários à mesma posição inicial. Quando enviesado, o intérprete, mesmo de boa-fé, está propenso a confirmar suas crenças preliminares (que podem estar equivocadas), optando por dados e informações que as abonem, e assim se dá sem o crivo apurado do sistema reflexivo: seu cérebro, ao pretender confirmar a todo custo, funciona rápido demais e se fecha a opções distintas.
ii) O juiz da instrução tende a sentenciar contaminado pela prova oral que diante dele foi produzida: denominado de representativeness bias, aqui o julgador acaba influenciado pelos gestos, atitudes, entonação de voz e trejeitos de todos aqueles, partes e testemunhas, ouvidos na audiência de instrução e julgamento, decidindo de forma arbitrária porque pautado em sentimentos e impressões impossíveis de serem controladas pelos litigantes e seus advogados. Estar-se-á diante de um viés cuja força coloca em questão a legitimidade do chamado "princípio da identidade física do juiz".
iii) O juiz tende a crer que os danos presentes eram previsíveis no passado: o hind-sight bias é um mecanismo mental que pode levar o julgador a considerar, a partir do conhecimento das consequências de uma ação qualquer, que elas mesmas eram perfeitamente previsíveis desde o princípio. Sua perspectiva é alterada uma vez que já se tem conhecimento do resultado que no passado era desconhecido. Estudos demonstram ser muito difícil realizar juízos sobre o acontecido, abstraindo-se completamente de um resultado conhecido. A Corte Suprema dos Estados Unidos, no caso Graham v. John Deere Co., de 1966, aplicando o direito sobre patentes, proclamou que os tribunais devem estar atentos para não cair nessa armadilha cognitiva, reconhecendo a tendência humana de perceber como obviedade algo à luz das consequências conhecidas, mas que à época nem de longe era evidente ou facilmente perceptível de forma prévia.
iv) O juiz tem dificuldade de ignorar as provas ilícitas: há um procedimento mental ( anchoring-and-adjustment bias) que conduz o intérprete a resultados decisórios diferentes a depender da valoração que faz acerca de um elemento de prova inicial, cuja influência indevida provoca erros comumente desapercebidos.
v) O juiz tem dificuldade de ignorar impressões recebidas em razão do conhecimento de propostas de acordo realizadas pelas partes: também aqui se verifica o anchoring-and-adjustment bias. O problema pode ser ilustrado com base na lei de procedimento civil inglesa, que proíbe o juiz de ter contato, antes e durante o processo, com propostas de acordos elaboradas pelas partes. Segundo assinalou a Suprema Corte da Inglaterra (caso Garret v. Saxby, em 2004), em tendo o julgador contato com uma dessas propostas, por um erro na tramitação do procedimento, é seu dever abster-se automaticamente de julgar.
vi) O juiz tende a supervalorizar laudos produzidos por peritos oficiais: o in group bias é uma propensão cuja tônica está em fazer com que o julgador valore, de forma injustificadamente homogênea, as atitudes, atos e opiniões das pessoas que pertencem ao mesmo grupo, pela só razão de pertencerem a esse grupo. O ser humano tem a tendência de seguir a voz daqueles que pertencem ao seu grupo.


Sobre os estudos e experimentos sobre a relação entre o comportamento do julgador e os vieses cognitivos, COSTA (2016) assume que ainda carecem de aprofundamentos, visto que à maior parte deles faltam a complexidade e a imprevisibilidade das situações reais de julgamento. Além do mais, a Análise Econômico-Comportamental do Direito ainda é um ramo do conhecimento científico em fase de infância, que mais se aproxima a uma coleção incipiente de vieses e heurísticas ainda a ser teoricamente unificada.


No entanto, os trabalhos de campo já realizados indicam que os juízes provavelmente estão também sujeitos a ilusões cognitivas, motivo pelo qual COSTA (2016) manifesta que a judicatura se deve cercar de cuidados institucionalizados, que propiciem a mitigação, a neutralização ou a eliminação mesma dessas ilusões, garantindo uma margem segura de atuação funcionalmente imparcial.



De qualquer forma, nas palavras de COSTA (2016), eventual ausência de absoluta certeza científico-psicológica não deve servir de pretexto a práticas suspeitamente enviesantes, uma vez que a incerteza científica deve sempre militar em favor da imparcialidade. Afinal, a imparcialidade judicial é o núcleo duro do devido processo legal e a nota característica essencial da própria noção de jurisdição, motivo pelo qual não se pode tolerar que os riscos potenciais de quebras inconscientes de imparcialidade sejam institucionalmente maximizados. Para COSTA (2016), um sistema processual não pode consentir em quebras desse jaez, pois isso equivaleria a consentir em inconstitucionalidades, daí a necessidade de reduzirem-se a extensão, a frequência e a incerteza dessas quebras.


No próximo post iremos tratar sobre a iniciativa probatória judicial e sobre ferramentas jurídicas de isolamento e desenviesamento do julgador.


 

Tiago Adede y Castro é advogado (OAB/RS 96.782) e sócio do escritório Adede y Castro Advogados Associados. Especialista em Direito do Trabalho e em Direito Processual Civil.



 





REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:


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